sábado, 2 de outubro de 2010

Preparação para o ministério presbiteral



Cardeal Joseph Ratzinger

Extraído de Um canto nuevo para el Señor: la fé em Jesucristo y la liturgia hoy, Salamanca, 20052, p. 187-204. Tradução de Paulo Sérgio Pedroso de Paula.

A idéia geral de reforma do Concílio Vaticano II incluía um projeto de formação reno-vada para o ministério presbiteral. Porém, os últimos anos da década de 60, nos quais tal pro-grama deveria ter sido colocado em prática, foram marcados, em todo o mundo ocidental, pela crise progressiva de seus fundamentos espirituais. Na visão do Concílio, a renovação deveria comportar continuidade e transformação, em igual medida; porém, no clima revolucionário daqueles anos, a mudança aparecia como uma esperança; tudo que estivesse ligado à tradição era considerado um peso, trava ou ameaça que era preciso eliminar de uma vez por todas. Assim, um momento da renovação se converteu rapidamente em crise. A pergunta era, então, se o seminário tinha ainda sentido; e seu objetivo de formação, o sacerdócio, era, a juízo de muitos, uma má leitura do Novo Testamento, uma recaída em algo antigo e anacrônico que se deveria superar. Enquanto isto, apareceram as primeiras inquietações; constata-se de novo que o ser humano só pode continuar a viver e se desenvolver se estiver dentro de uma estrutura: o crescimento só é possível onde existem raízes, e o novo conhecimento só pode amadurecer se o ser humano não perder a memória. A memória histórica, que é tema e objetivo dos jubileus, não se deve considerar como uma nostalgia romântica; é fecunda quando dá lugar à reflexão sobre o permanente e à busca do caminho para avançar.

1. A construção da casa espiritual: integração na família de Deus

Quando fui nomeado, no ano de 1977, arcebispo de Munique e Frisinga, vi-me imerso na situação de crise e de efervescência geral. O número de candidatos ao sacerdócio na arqui-diocese era pequeno; alojavam-se no Georgianum, que o duque George, o Rico, tinha fundado no ano de 1494 como seminário regional da Baviera, junto à universidade de Ingolstadt, mais tarde transferida para Munique. Tive certeza, desde o início que meu dever primordial era dotar novamente a diocese de um seminário próprio, ainda que muitos duvidassem que tal empreendimento tivesse sentido na nova Igreja. Pouco antes de deixar novamente minha dio-cese de origem, na festa de seu patrono, São Corbiniano – em 20 de novembro de 1981 – tive a alegria de lançar a pedra fundamental, num dia de chuva torrencial, para o edifício que hoje se alça majestoso, e iniciar, assim, de forma irreversível, algo que deveria ter continuidade.

Quando refleti sobre a frase que deveria ser gravada na pedra fundamental, vieram-me à memória os maravilhosos versículos da Primeira Carta de Pedro, que aplica o título de «Is-rael» ao povo dos batizados: «Também vós, como pedras vivas, entrai na construção de um edifício espiritual, para um sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais, aceitos por Deus pela mediação de Jesus Cristo» (1Pd 2,5). Provavelmente estes versículos são parte de uma catequese batismal da época neotestamentária. Aplicam a teologia da aliança e da elei-ção, que no Antigo Testamento interpretou o acontecimento do Sinai, à nova comunidade de Jesus Cristo. Neste sentido, o texto expõe singelamente o que significa ser um batizado e co-mo a Igreja cresce neste mundo como casa viva de Deus. Assim, que poderia ocorrer de mais elevado e melhor para um seminário do que o fenômeno de alguns jovens que se unem ao

1 Este texto, originalmente, é uma conferência proferida na comemoração do 400º aniversário do Seminário de Wurtzburgo; isto explica a referência inicial ao significado dos jubileus.

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ideal do batismo e do discipulado, e se convertem em Igreja viva? Pareceu-me que essa exor-tação de São Pedro aos batizados dizia tudo o que é essencial a respeito de um seminário e que podia ser considerada uma sentença programática, como fundamento da casa.

Para que existe um seminário? Como deve ser hoje a formação sacerdotal? Encontra-mos no texto bíblico, primeiramente, a frase sobre a construção de uma casa espiritual com-posta de pedras vivas. «Casa» significa, no sentido bíblico, não tanto o edifício de pedra, mas a linhagem, a família – um uso lingüístico que persiste quando falamos de casa dos Wittelsba-ch, casa dos Habsburgo, etc –2. Os batizados, de pessoas desconhecidas entre si, passam a ser uma família, a família de Deus. Esta mudança deve se realizar concretamente no seminário, para que logo o futuro sacerdote, em sua paróquia ou onde quer que esteja, seja capaz de reu-nir as pessoas na família, na comunidade doméstica de Deus. O texto fala de casa «espiritual». Este adjetivo não significa, como sugere nossa sensibilidade lingüística, uma casa em sentido meramente figurado e, portanto, impróprio e irreal. «Espiritual» faz referência aqui ao «Espí-rito Santo», isto é, à força criadora, sem a qual não existiria nada. Uma casa espiritual, edifi-cada pelo Espírito Santo, é, portanto, a casa verdadeiramente real. O vínculo que procede do Espírito Santo é mais profundo, é mais forte e mais vivo que o mero parentesco de sangue. As pessoas que se reúnem em virtude do toque comum do Espírito Santo se acham mais próxi-mas entre si do que qualquer outro parentesco pode conseguir. O evangelho de João fala a este propósito daqueles que crêem no nome do Logos e adquirem assim uma nova genealogia, daqueles «que não nasceram do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do homem, mas de Deus» (1,13). Estabelece-se, assim, o vínculo do amor com aquele que não foi engen-drado por vontade carnal, mas sim pela força do Espírito Santo: Jesus Cristo. Convertemo-nos em «casa espiritual» quando somos comunidade familiar com Jesus Cristo. Isto dá essa sinto-nia interna, essa imagem nova e esse novo fundamento vital que é mais forte do que todas as diferenças naturais e faz crescer o verdadeiro parentesco interior. O seminário está sempre em construção, como a Igreja e como cada família. Vai se formando constantemente na medida em que as pessoas deixam que Jesus Cristo construa, com elas, a casa viva.

Podemos afirmar que a missão essencial de um seminário é oferecer um espaço onde se possa realizar incessantemente esta construção espiritual. Sua missão é ser um lugar de encontro com Jesus Cristo, que integre as pessoas em Jesus de tal modo que possam chegar a ser sua voz para os homens e para o mundo de hoje. Esta afirmação básica se torna mais con-creta quando recorremos novamente ao texto citado. A meta é a casa; o material são as pe-dras... pedras vivas, pois se trata de construir uma casa viva. Por isso, o versículo fala de cons-trução na forma passiva: como pedras vivas, fazei parte da construção de um edifício espiritu-al. O ativismo nos leva a entender estas palavras num sentido ativo: construir o reino de Deus, construir a Igreja, construir uma nova sociedade, etc. O novo testamento vê nosso papel de outro modo. O construtor é Deus, juntamente com o Espírito Santo. Nós somos pedras; para nós, a construção consiste em ser construídos. O antigo hino litúrgico para a consagração do templo descreve plasticamente o processo, falando de golpes saudáveis de cinzel, trabalho minucioso do mestre com o martelo e de enlaces ajustados, até que os blocos de pedra passam a ser o grande edifício da nova Jerusalém. Tocamos aqui em algo muito importante: construir é ser construído. Se queremos ser casa, devemos – cada um deve – aceitar ser trabalhados por outro. Se queremos ser material apto para a casa, devemos nos deixar ajustar ao posto para o qual querem nos utilizar. Aquele que quiser ser pedra no conjunto e para o conjunto, deve deixar-se vincular à totalidade. Não pode simplesmente fazer ou omitir as coisas segundo seu critério. Deve aceitar ser cingido e conduzido por outro para onde não quer ir (cf. Jo 21,18). O Evangelho de João nos oferece outro exemplo semelhante: a videira, para produzir fruto, deve

2 Cf. O. Michel, oikos ktl., em ThWNT V, 122-161, especialmente 113s; H. A. Hoffner, bajit, em Wörterbuch zum AT I, 629-638; M. Wodke, Oikon in der Septuaginta. Erse Grundlagen, em O. Rössler (ed.), Hebraica, Berlim, 1977, 59-140, especialmente 60ss.

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ser limpa; deve se deixar podar. O caminho para produzir mais fruto passa pela dor da purifi-cação (Jo 15,2).

Como primeira conclusão destas considerações podemos afirmar que a preparação sa-cerdotal deve oferecer algo mais que a educação e a formação humana. O candidato deve co-meçar aprendendo as virtudes sem as quais nenhuma família pode se manter unida. Isto é de grande importância, porque o sacerdote não deve se capacitar somente para conviver na famí-lia do presbiterato, da Igreja local e universal; sua tarefa é, ademais, associar e manter unidos, na comunhão da fé, indivíduos que são estranhos por origem, formação, temperamento e cir-cunstâncias da vida. Deve incentivar nas pessoas a capacidade para a reconciliação, o perdão e o esquecimento, a tolerância e a generosidade. Deve ensinar-lhes o respeito pelo outro em sua alteridade, a paciência recíproca, a combinação da confiança, da discrição e da sincerida-de em sua justa medida, e muitas outras coisas. Deve se capacitar, sobretudo, para auxiliar às pessoas na dor: dor física, decepções, humilhações e angústias que a ninguém poupam. Como fazer tudo isto, se antes não se aprendeu pessoalmente? A capacidade de aceitar e suportar o sofrimento é uma condição fundamental para a maturidade do ser humano; se não se aprende isto, o fracasso da existência é inevitável. A acidez contra todos e contra tudo contamina o fundo da alma e o converte numa terra deserta. O domínio da dor... antigamente falava-se de ascesis; o termo não é agradável hoje; diz-nos mais se o traduzirmos do grego para o inglês: training. Todos sabem que não existe êxito sem treinamento e sem essa superação de si mes-mo que o treinamento traz consigo. Hoje se treina em todo o mundo com empenho e seriedade para qualquer gênero de arte, e assim vemos em muitos campos alguns resultados que antes eram impensáveis. Por que nos parece tão estranho treinarmos para a vida autêntica e verda-deira, exercitar-nos na arte da renúncia, da auto-superação, da liberdade interior diante de nossos desejos?

2. A paixão pela verdade

Do muito que se poderia dizer sobre este tema, vou destacar somente um ponto: a edu-cação para a verdade. Muitas vezes, a verdade resulta incômoda para o homem, porém é o guia mais poderoso para o desprendimento, para a verdadeira liberdade. Tomemos o exemplo de Pilatos. Ele sabe exatamente que aquele Jesus acusado é inocente, e que deve absolvê-lo para fazer uma justiça verdadeira. Quer fazê-lo; porém, esta verdade aparece em conflito com seu cargo; pode acarretar-lhe desgostos ou, inclusive, custar-lhe a perda de sua posição. Po-dem surgir distúrbios, e ele pode causar uma má impressão ao imperador, etc. Prefere sacrifi-car a verdade, que não grita nem se defende, mesmo que a traição deixe em sua alma um vago sentimento de fracasso. Esta situação se repete sempre na história. Recordemos um exemplo que é o oposto desse: Tomás More. Parecia óbvio reconhecer ao rei a supremacia sobre a Igre-ja. Não havia um dogma explícito que o excluísse de modo inequívoco. Todos os bispos o haviam feito; por que exporia sua vida, ele, um leigo, e precipitar a sua família na ruína? Se não queria pensar em si mesmo, não deveria, ao menos, ponderar os motivos, dar ao menos a prioridade aos seus, em lugar de seguir obstinadamente à voz de sua consciência? Em tais casos fica patente em nível macroscópico, por assim dizer, o que ocorre constantemente no cotidiano de nossa vida. Posso livrar-me de um assunto incômodo fazendo uma pequena con-cessão para a mentira. Ou o inverso: aceitar que as conseqüências da verdade me acarretem um tremendo desgosto. Quantas vezes isso ocorre! E quantas vezes cedemos! A situação em que se encontrou Tomás More é comum se a traduzimos ao cotidiano: são muitos que dizem: como não? Como vou perturbar a paz do grupo? Por que vou me colocar a fazer o ridículo? Não está a paz da comunidade acima da minha verdade? A harmonia do grupo se converte assim em tirania contra a verdade. Georges Bernanos, obcecado pelo mistério da vocação sa-cerdotal e pelas tragédias de seu fracasso, expôs dramaticamente este perigo na figura do bis-

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po Espelette. O prestigiado bispo é professor acadêmico; culto e amável, sabe dizer a palavra certa na hora certa, exatamente aquilo que o mundo culto espera de um bispo: «A cordialidade deste sacerdote engenhoso não decepciona a ninguém, exceto ele mesmo. Sua covardia inte-lectual é imensa... Ninguém é tão desprezível como alguém que só vive para ser querido. Es-tas almas tão hábeis para comportar-se ao gosto de cada um, são mero espelho...». Bernanos avança em sua análise até chegar à causa deste fracasso: «‘Eu pertenço a meu tempo’, repete com semblante de alguém que testemunha a seu favor... Porém, nunca adverte que desse mo-do está renegando o sinal eterno com o qual foi marcado»3.

Eu não duvido em afirmar que a grande enfermidade de nosso tempo é o seu déficit de verdade. O êxito e o resultado tiraram a sua primazia em todas as partes. A renúncia à verdade e a fuga vazia para a conformidade de grupo não são um caminho para a paz. Este gênero de comunidade está construído sobre a areia. A dor da verdade é o pressuposto para a verdadeira comunidade. Esta dor deve se aceitar dia-a-dia. Somente na pequena paciência da verdade amadurecemos por dentro, fazemo-nos livres para nós mesmos e para Deus.

Aqui aflora novamente a imagem das pedras vivas. Pedro ilustra o conteúdo da ima-gem com as palavras do Sl 118,22, que era um texto cristológico fundamental: «A pedra que os pedreiro, tornou-se agora a pedra angular». Não vamos entrar aqui na teologia da morte e da ressurreição que encerra este versículo; porém, a idéia da pedra viva nos levou a reconhe-cer que o construir inclui o construído, que sem o elemento passivo não se pode produzir a paixão purificadora. Bernanos definiu a dor como a essência do coração divino, e o sofrimen-to corporal e espiritual como o mais valioso que o Senhor nos impõe4. A pedra rejeitada é a imagem daquele que assumiu a dor mortal do amor supremo e chegou a ser o espaço para todos nós: a pedra angular que faz da humanidade desgarrada uma casa vivente, uma família nova. No seminário, na formação sacerdotal, não integramos um grupo qualquer. Fazendo isso, corremos o perigo de que a paixão do ajuste consista na mera acomodação ao grupo e sacrifiquemos a nossa verdade. Não construímos com acerto a um paradigma autofabricado. Deixamo-nos construir por aquele que é o paradigma e meta de todos nós, pelo segundo A-dão, ao que Paulo chama Espírito da vida (1Cor 15,45). Este plano construtivo justifica o es-forço das purificações e nos garante que são purificações e não destruições. Nesta construção crescemos internamente, dispostos a assimilar «tudo o que seja verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honrável, tudo o que seja virtude e coisa digna de elogio» (Fl 4,8). A verdade nos faz idôneos para tal construção.

Quando se alcança esta meta, o seminário chega a ser um lar. Sem este processo co-mum, é uma série de habitações em uma residência de estudantes cujos moradores permane-cem fechados em si mesmos. É exatamente a prontidão de ânimo para a purificação que ga-rante o bom humor e a alegria desta casa. Se não existe tal disposição, a crítica e o tédio com tudo e consigo mesmo criam um ambiente no qual os dias são cinzentos e a alegria não se propaga porque falta o sol necessário para o crescimento.

3. Casa e templo: serviço à Palavra encarnada

Estas reflexões nos introduzem numa segunda parte na qual, deixando de lado a for-mação essencial do homem e do cristão, podemos tocar no tema da preparação para o ministé-rio sacerdotal. O ponto de partida nos é oferecido, uma vez mais, pelo texto da casa espiritual feita de pedras vivas. É a casa que Deus constrói para si no mundo e que, por nosso lado, construímos para ele: a «casa de Deus». Toda a teologia do templo está recolhida neste texto. O templo é o lugar da morada de Deus, espaço de sua presença neste mundo. Por isso é o lu-gar da reunião onde se realiza constantemente a aliança. É o ponto de encontro de Deus com o

3 G. Bernanos, L’imposture (Bibliothèque de la Plêiade 1961), 387-388.

4 Ibid., 352.

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seu povo, que encontrando Deus também se encontra consigo mesmo. É o lugar em que res-soa a Palavra de Deus, onde o código de seus preceitos adquire raízes e se torna visível a to-dos. É, finalmente, o lugar da glória de Deus. Esta glória de Deus brilha na pureza intacta de sua Palavra; porém, aparece também na beleza festiva do culto. A glória se manifesta na glori-ficação, que é resposta ao chamado de sua Palavra, uma resposta sintética e antecipada que deve continuar na vida real, que deve ser reflexo de sua glória. A ruptura do véu do templo na morte de Jesus significa que o templo deixou de ser lugar do encontro com Deus e o homem neste mundo. Desde o instante da morte de Jesus, seu corpo entregue por nós é o novo e ver-dadeiro templo; a destruição física do templo de pedra no ano 70 não faz mais que tornar visí-vel o que ocorreu com a morte de Jesus5. Assim, encontra a frase do salmo seu pleno cum-primento: «Sacrifício e oblação não quisestes; porém me formaste um corpo» (Sl 40,7; Hb 10,5). O culto adquiriu assim sua nova e definitiva significação: glorificamos a Deus fazendo-nos um só corpo com Jesus, isto é, numa nova existência espiritual, na qual ele nos envolve totalmente, com corpo e vida (1Cor 6,17). Glorificamos a Deus deixando-nos integrar neste ato de amor que se cumpriu na cruz. Glorificação e aliança, culto e vida são inseparáveis entre si. Esta hora de Jesus, que durará até o fim dos tempos, consiste no fato de que ele nos atrai para si a partir da cruz (Jo 12,32) para que sejamos «um» com ele (Gl 3,28).

Em nossa páscoa, passagem pela qual saímos de nós mesmos e entramos no âmbito do corpo de Cristo, celebramos constantemente o novo culto. Nele, continuam vigentes os ele-mentos essenciais que definem o culto do Antigo Testamento, mas que, só agora, adquirem eu pleno sentido. Dissemos que o «templo» é primordialmente um lugar para a Palavra de Deus. Por isso o presbiterato, que está a serviço da Palavra humanada, deve tornar presente a Pala-vra de Deus em sua pureza não falseada e em sua permanente atualidade. É fundamental que o sacerdote do Novo Testamento não exponha uma filosofia de vida pessoal, que ele tenha idea-lizado ou lido, mas a Palavra que nos foi confiada e que não podemos adulterar, como Paulo recorda de forma incisiva e literal na Segunda Carta aos Coríntios (2Cor 2,17). Estamos aqui diante de uma exigência desafiadora que deve ser enfrentada por todo sacerdote; uma tal exi-gência nos faz ver a grandeza e a amplitude de tudo o que está em jogo na formação e na pre-paração para o sacerdócio. Como sacerdote, não posso oferecer minhas idéias privadas; sou enviado de um outro, e é isso que dá relevância à minha mensagem: «Somos mensageiros de Cristo, como se Deus exortasse por meio de nós. Em nome de Cristo vos suplicamos: reconci-liai-vos com Deus!» (2Cor 5,20). Esta sentença de Paulo é a definição exata da forma básica e da missão fundamental do sacerdote na Igreja da nova Aliança. Tenho que proclamar a pala-vra de outro e isto significa que devo conhecê-la, entendê-la e me apropriar dela.

Porém, este anúncio requer algo mais do que a atitude de um mensageiro telegráfico que transmite fielmente palavras alheias sem ser em nada afetado. Devo transmitir a palavra do Outro em primeira pessoa, pessoalmente, e ajustar-me a ela de forma que seja palavra mi-nha. Porque esta mensagem não requer um telegrafista, mas uma testemunha. O normal é que o ser humano forme para si uma idéia e logo busque palavras adequadas; porém, aqui aconte-ce o inverso: a Palavra lhe precede. Ele se põe à disposição da Palavra e se remete a ela. Este processo de conhecimento, compreensão e reflexão, de adaptação a esta Palavra é a essência da formação sacerdotal. O Padre Kolvenbach, em seu livro Exercícios, define esta subordina-ção do próprio conhecimento à doutrina da Igreja como um «sacrificium intellectus», e conti-nua: «Este ‘sacrificium’ imprime em toda a atividade espiritual... o selo de uma oblação em sentido próprio, um selo sacerdotal...A capacidade... de anunciar não se orienta... primeira-mente ao saber, mas à integração pessoal do sacerdote dentro corpo de Cristo e à integração de nossa compreensão na Palavra de Deus comunicada. Como para os levitas, os profetas e os apóstolos, também para os anunciadores da Palavra de Deus, o processo de aprendizagem –

5 Cf. W. Trilling, Christusverkündigung in den synoptischen Evangelien, Munique 1968, 201; J. Gnilka, Das Matthäusevangelium II, Friburgo 1988, 476.

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que nunca termina – consiste em ceder o primeiro lugar à glória de Deus... Um sacerdote deve se consagrar sem restrições à palavra de Deus»6. O Padre Kolvenbach explica a partir disso a misteriosa fórmula paulina de que devemos nos «revestir de Cristo»: revestir-se de Cristo consiste neste processo de identificação com a Palavra da fé, para que seja algo nosso por nos termos ajustado a ela.

Isto significa, na prática, que a dimensão intelectual e a espiritual são inseparáveis nos estudos teológicos. O fato de que exista no mundo uma Palavra de Deus acessível a nós, algo que Deus nos disse e nos diz, é a realidade mais impressionante que se pode pensar; porém, estamos embotados pelo hábito para perceber o prodígio desta comunicação. Há pouco me recordei de uma pequena anedota que Helmut Thielicke7 relata em suas memórias. Dois estu-dantes de filologia, que nunca tinham recebido ensinamento religioso, assistiram a um de seus sermões, na famosa igreja evangélica de São Miguel, em Hamburgo (Hamburger Michel). O que mais lhes impressionou foi o Pai-nosso recitado no final, cujo texto desconheciam. Como lhes pareceu que a todos era familiar, não se atreveram a perguntar e procuraram se informar por conta. Fracassaram na sua tentativa de encontrá-lo na biblioteca estatal. Tampouco pude-ram achar o texto na faculdade teológica. A coisa estava se fazendo mais enigmática até que no domingo, durante a celebração matinal transmitida por rádio, anotaram o Pai-nosso recita-do em comum. «Assim colocamos o pai-nosso no bolso», foi o final do relato dos dois estu-dantes a Thielicke sobre a grande e árdua viagem de descoberta da oração do Senhor, que desembocou na conversão deles à Igreja católica8. Repete-se, aqui, em nosso tempo, o fenô-meno da fé dos pagãos que fez o Senhor proclamar: «Asseguro-vos que em nenhum israelita encontrei tanta fé» (Mt 8,10). Conhecer a aventura da proximidade da Palavra de Deus em toda a sua entusiasmante beleza e nela mergulhar com todas as forças, pertence à essência da vocação sacerdotal. Por isso, nenhum esforço pode parecer-nos excessivo para o conhecimen-to da Palavra de Deus. Se vale a pena aprender italiano para entender a Dante em seu original, é muito mais óbvio que se deva aprender a ler a Escritura na língua original. Todo o rigor dos estudos históricos serve obviamente para nos introduzir, cada vez mais, na Palavra de Deus. A disciplina racional, a disciplina do trabalho metodológico, é uma peça irrenunciável do cami-nho para o sacerdócio. Alguém que ama, quer conhecer; deseja saber mais e mais sobre a pes-soa que ama. Assim, o afã de conhecer é uma tendência interna do amor. Além disto, a disci-plina metódica que obriga as pessoas a se despojarem constantemente de suas idéias preferi-das, para se adaptar aos dados reais, é um modo insubstituível de educação para a verdade e a veracidade. Trata-se de uma parte essencial do desprendimento do testemunho que não se apregoa a si mesmo, mas que está a serviço de algo que é maior do que ele. Uma espirituali-dade que queira deixar isto de lado, converte-se em fanatismo. A edificação sem verdade é uma espécie de auto-satisfação espiritual que não nos podemos permitir.

O esforço cuidadoso e disciplinado de entender a Sagrada Escritura é o fundamento da educação para o sacerdócio. Porém, está claro que não é suficiente uma leitura puramente histórica da Bíblia. Não a lemos como palavra humana do passado; lemo-la como Palavra de Deus, que ele faz chegar a todos os tempos, através de pessoas de um tempo passado, como palavra sempre presente. Situar a Palavra no passado significa negar a Bíblia como Bíblia. Esta exegese puramente histórica, orientada ao passado, leva, através de sua lógica interna, à negação do cânon e, conseqüentemente, ao questionamento da Bíblia como tal. Aceitar o câ-non significa sempre ler a Palavra para além do mero instante em que foi pronunciada, isto é, perceber nos autores o povo de Deus como suporte e autor permanente. Porém, dado que ne-nhum povo é povo de Deus por iniciativa própria, a aceitação deste sujeito significa reconhe-

6 P. H. Kolvenbach, Der Österliche Weg. Exerzitien zur Lebenserneuerung, Friburgo 1989, 24.

7 Teólogo e pregador evangélico alemão (1908-1986) que durante a Segunda Guerra, resistiu à ideologia nazista. Foi reitor das Universidades de Tubinga e de Hamburgo (N. do T.).

8 H. Thielicke, Zu Gast auf einem schönen Stern. Erinnerungen, Hamburgo, 1984, 307s.

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cer, nele e através dele, a Deus como verdadeiro inspirador de seus caminhos e de sua memó-ria plasmada na Escritura. Colocando-se nesta perspectiva, a exegese se converte em exegese bíblica e em teologia; esta nasce quando existe uma Igreja que é o sujeito comum, e sem este sujeito não existe9. Quando a teologia o abandona, converte-se em filosofia da religião: o con-junto de disciplinas teológicas se desagrega em uma justaposição de ciências históricas, filo-sóficas e praxiológicas, como o cânon se desagrega quando não existe um sujeito permanente, o único que pode dar crédito a ele como cânon. Se a presença interior deste sujeito – a Igreja – se debilita nas almas, é inevitável o processo desagregador: a dissolução do cânon e a dissolu-ção da teologia em uma série de especialidades apenas ligadas entre si. Tal é a grande tenta-ção de nossa época, onde o sentido do mistério da Igreja se extingue quase que totalmente e a grande Igreja aparece como uma organização capaz de coordenar os temas religiosos, porém, ela mesma não entra na religião, que se desenvolve no âmbito afetivo da comunidade. Por isso, a vivência e a aceitação da Igreja se tornam parte substancial da preparação para o pres-biterato. Se nesta época a Igreja não «desperta nas almas», no final tudo é subjetivo. A fé de-genera em uma eleição privada daquilo que me parece mais atualizável; não se produz o des-prendimento de mim mesmo e a transferência para a Palavra do Outro. A Palavra é então, rebaixada à minha palavra: eu não me integro no Corpo de Cristo, mas permaneço em mim mesmo.

Isto significa que, por causa de sua própria natureza, o presbiterato exige uma prepara-ção global e científica ampla. A religião do Logos é essencialmente uma religião racional. Ela inclui a dimensão filosófica e histórica, e assume como referência a prática; porém, tudo isto só pode convergir a partir de um fundamento teológico e, sem a realidade da Igreja, tal fun-damento não pode subsistir. Hoje, na era da especialização progressiva, creio que a busca da unidade interna da teologia e a sua concentração em um núcleo passaram a ser uma prioridade urgente. A teologia deve ser sem dúvida multifacetada, porém também é capaz de distinguir entre o saber particular e o saber fundamental; e deve, sobre todas as coisas, transmitir uma visão orgânica do conjunto no qual se integra o essencial. Se, ao término dos estudos especia-lizados de nível superior, tivéssemos apenas um amontoado de conhecimentos especializados, mas sem conexão entre si, tais estudos não teriam cumprido seu objetivo. Somente a totalida-de permite conhecer os critérios que são imprescindíveis para o necessário discernimento dos espíritos, para a autonomia espiritual do anunciador. Se não aprende a julgar a partir do todo, cai exposto, indefeso, ao vaivém dos modismos.

Isto me leva a outro ponto. Sempre me fez pensar o fato de que a oração do Cânon Romano, na qual os sacerdotes pedem por si mesmo, utilize a palavra «pecador»: «nobis quo-que peccatoribus». O apelativo oficial que se aplicam os clérigos na presença de Deus deixa de lado a dignidade e vai ao núcleo: somos «servos pecadores»10. Não creio que isso possa ser interpretado como uma simples concessão à humildade. Expressa a mesma consciência que fez Isaías proclamar diante da teofania: «Ai de mim, estou perdido! Sou homem de lábios impuros... e vi com meus olhos ao Rei e Senhor dos exércitos» (6,5); a mesma consciência que deixa Pedro surpreso ante a pesca milagrosa e o faz exclamar: «Afasta-te de mim, Senhor, que sou um pecador!» (Lc 5,8); a mesma consciência que ressoa na liturgia quando o bispo exorta aos candidatos: «Com grande temor deve-se subir a esta altura...». É perigoso acostu-mar-se a estar próximo do sagrado com freqüência. Isto desemboca facilmente no corriqueiro e no habitual e, por conseqüência, no prejudicial. As duras palavras de Jesus dirigidas aos fariseus e sacerdotes têm como fundamento uma conjuntura psicológica e sociológica que está

9 Cf. J. Ratzinger, Schriftauslegung im Widerstreit, Friburgo, 1989, especialmente 7-44; sobre a questão da Igreja como «sujeito» da teologia posso remeter ao trabalho «Teologia e Igreja» de meu livro Wesen und Auftrag der Theologie, Einsiedeln, 1993, 39-62.

10 Cf. J. A. Jungmann, Missarum sollemnia II, Friburgo 1952, 311; Th. Schnitzler, Meditaciones sobre la misa, Barcelona, 1960, 120s.

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sempre presente: o hábito nos torna insensíveis. Recordemos o exemplo dos dois estudantes e sua busca pelo Pai-nosso. Ali vê-se um reflexo do interesse dos pagãos e de nossa própria cegueira. Por isso a Igreja considerou no passado que não se poderia estudar teologia como uma simples profissão, para garantir com ela o próprio sustento. Se assim fosse, poder-se-ia tratar a Palavra de Deus como algo que nos pertence, mas não é assim. Moisés teve que tirar as sandálias diante da sarça ardente. Poderíamos dizê-lo de outro modo: aquele que se expõe ao fogo radiativo da palavra de Deus e o maneja profissionalmente, deve prevenir-se contra sua proximidade; do contrário sofrerá queimaduras. A realidade deste perigo é anunciada pelo fato de que todas as grandes crises da Igreja são acompanhadas por uma decadência do clero; um clero para o qual o relacionamento com o sagrado já não seja o mistério surpreendente e perigoso da proximidade abrasadora do Santíssimo, mas uma maneira cômoda de se assegurar o sustento. É necessário que se previna o risco de lidar com o mistério de Deus como um fun-cionário irreverente. É isto que se encontra expresso na ordem dada a Moisés de tirar as san-dálias; as sandálias, feitas de couro, da pele de animais mortos, era a expressão do morto, e Moisés devia se desfazer do morto para poder estar próximo daquele que é a vida. O morto... é o excesso de coisas mortas, as posses com as quais se rodeia uma pessoa. O morto abarca também aquelas atitudes que se transformam em obstáculos no caminho pascal: somente a-quele que perde a si mesmo, se salva. O sacerdócio requer um abandono da existência burgue-sa, deve assumir a autoperda de um modo estrutural. O fato de o sacerdócio e o celibato esta-rem unidos procede desta verdade: o celibato é a antítese da vida normal. Aquele que o assu-me desde dentro, não pode considerar o presbiterato como uma profissão entre as outras, mas deve afirmar a renúncia ao próprio projeto vital, deixar-se cingir e guiar pelo outro por onde não queria ir. Antes de tomar essa decisão, é preciso ouvir e meditar a palavra do Senhor: «Se alguém de vós quer construir uma torre, não se senta primeiro para calcular os gastos, para ver se tem o suficiente para terminá-la?» (Lc 14,28). Ninguém pode ir para o sacerdócio por inici-ativa própria, como seu modo de vida. O exame cuidadoso para saber se com o sacerdócio estou respondendo ao chamado do Senhor ou se somente busco realizar a mim mesmo, é uma condição fundamental. E em todo o trajeto está a condição de manter vivo o contato com o Senhor. Porque se afastamos os nossos olhos dele, pode ser que nos aconteça o mesmo que a Pedro, quando saiu ao encontro de Jesus sobre as águas: somente a visão do Senhor pode re-sistir à força da gravidade, e pode fazê-lo realmente. Sempre somos pecadores; porém, se ele nos sustenta, as águas do abismo perdem o seu poder.

Queria voltar, neste propósito ao «nobis quoque», a oração sacerdotal do Cânon Ro-mano. Ela invoca, em favor do sacerdote, os guias e intercessores, começando por João Batis-ta; e, logo em seguida, catorze santos; sete varões, todos mártires, e sete santas mulheres e virgens. Representam as diversas áreas geográficas da Igreja e as diferentes vocações nela existentes: todo o povo santo de Deus11. O sacerdote está apoiado pelos santos e por toda a comunidade vivente dos fiéis. Parece-me especialmente significativo que o Cânon Romano mencione os nomes das santas mulheres justamente na oração pelos sacerdotes. O celibato sacerdotal nada tem a ver com a misoginia; tampouco significa uma ruptura de vínculos com a mulher. A maturação interna de um sacerdote depende essencialmente de que encontre a rela-ção correta com as mulheres; necessita ser apoiado por mães, virgens, profissionais e viúvas que aceitem sua missão especial e o acompanhem nela com bondade e solicitude feminina, desinteressada e pura.

4. Palavra e sacramento: o lugar do culto

11 Cf. Th. Schnitzler, Meditaciones sobre la missa, 122.

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Nossas reflexões se movem sempre na idéia de que nossa vocação é a de fazer parte de um templo vivo. O templo inclui o culto divino, o sacrifício; assim nos diz a Primeira Carta de Pedro. Como cristãos, cremos na Palavra encarnada. Por isso, o serviço sacerdotal deve alcançar algo mais que a pregação, mais que uma exposição da Bíblia. Aquilo que se fez visí-vel na palavra, passou para os sacramentos, diz São Leão Magno12. A palavra de fé é essenci-almente palavra sacramental. Daqui que a formação para o sacerdócio deva ser uma prepara-ção para o serviço dos sacramentos, para a liturgia sacramental da Igreja. Não vou expor ago-ra por meio de grandes considerações o que isto significa, já que o que disse anteriormente já estava pensado a partir de uma ótica sacramental. Uma coisa é certa: a eucaristia diária deve ser o núcleo da preparação sacerdotal. A capela deve constituir o centro do seminário, e a proximidade eucarística deve continuar e se aprofundar na adoração pessoal diante do Senhor presente. O sacramento da penitência deve ser sempre a brasa acesa da purificação, que o pro-feta Isaías menciona no relato de sua vocação (6,6); deve ser a força de reconciliação que nos alivia de todas as tensões e, guiados pelo Senhor, nos leva à união.

A liturgia comporta o silêncio e a celebração festiva. Dos meus anos de seminário, os momentos da missa matinal com seu frescor e pureza não contaminados, juntamente com as grandes celebrações cheias de esplendor festivo, são as mais belas recordações que guardo. A liturgia é bela precisamente porque nós não somos seus agentes, mas participamos em algo que é maior, que nos envolve e incorpora. Farei nova referência ao Cânon da Missa romana: o «communicantes» menciona os nomes de vinte e quatro santos em correspondência com os vinte e quatro anciãos que, segundo o quadro do Apocalipse, rodeiam o trono de Deus na li-turgia do céu13. Toda liturgia é liturgia cósmica, um sair de nossos humildes agrupamentos para a grande comunidade que abraça céu e terra. Isto lhe dá amplitude, grande dimensão; isto faz de cada liturgia uma festa; enriquece nosso silêncio e nos convida a buscar essa obediên-cia criativa que nos capacita para tomarmos parte no coro da eternidade.

O culto está relacionado com a cultura; isto é algo que salta aos olhos. A cultura sem culto perde sua alma, e o culto sem cultura ignora sua própria dignidade. Se a formação sa-cerdotal é substancialmente, em seu núcleo, formação litúrgica, um seminário deve ser tam-bém uma casa ampla de formação cultural. A música, a literatura, a arte figurativa, o amor à natureza, tudo está presente, tudo isto lhe pertence. Os talentos são diversos, e o bonito é que, no seminário, muitos e diferentes talentos podem se complementar. Ninguém pode tudo, po-rém ninguém pode se voltar para a vulgaridade. A liturgia é o contato com a própria beleza, com o amor eterno. Dela deve irradiar a alegria para a casa, nela pode se transformar e se su-perar o peso do dia. Quando a liturgia é o centro da vida, achamo-nos no âmbito da exortação paulina: «Alegrai-vos sempre; repito-vos, alegrai-vos. O Senhor está próximo» (Fl 4,4). A partir do ponto central que é a liturgia, somente a partir dele, se compreende que Paulo defina o apóstolo, o sacerdote da nova aliança, como «cooperador na vossa alegria» (2Cor 1,24).

Na época de minha juventude encontrávamos, ainda que ocasionalmente, no mundo rural, a crença de que a preparação para o sacerdócio consistia, sobretudo, em aprender a dizer a Missa. Alguém achava estranho que esta crença perdurasse tanto tempo, ainda mais sabendo que, para dizer a missa, era necessário aprender latim, algo nada simples. Na realidade, cabe afirmar efetivamente que, no fim das contas, a preparação para o sacerdócio consiste em a-prender a celebrar a eucaristia. Porém, cabe afirmar também, inversamente, que a eucaristia existe para nos ensinar a viver. A escola da eucaristia é a escola da vida justa; conduz-nos ao ensinamento daquele que pode dizer com exclusividade: eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). O tremendo ministério da eucaristia consiste no fato de que o sacerdote pode falar com o eu de Cristo. Fazer-se sacerdote e sê-lo continua sendo uma aproximação desta identi-

12 Sermo 2 de Ascenzione, 2 PL 54, 398.

13 Th. Schnitzler, Meditaciones sobre la Misa, 96-97; sobre a esencia da liturgia, J. Corbon, Liturgie aus dem Urquell, Einsiedeln, 1981.

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ficação. Nunca conseguiremos alcançá-la; porém, se a buscamos, estamos no bom caminho: o caminho que leva a Deus e ao homem, o caminho do amor. É com esta medida que devemos sempre medir o caminho para o sacerdócio.

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